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Opinião Segunda-feira, 28 de Abril de 2025, 08:27 - A | A

Segunda-feira, 28 de Abril de 2025, 08h:27 - A | A

CHRISTIANY FONSECA

Do encantamento ao feminicídio: A violência invisível nas relações afetivas

Christiany Fonseca

A série “YOU”, da Netflix, conquistou o público ao mostrar a história de Joe Goldberg, um homem aparentemente gentil, atencioso e apaixonado, mas por trás dessa fachada de príncipe encantado, revela-se um perseguidor, controlador e assassino.

O sucesso da série expõe, de forma inquietante, a romantização de comportamentos abusivos e o fascínio que muitas vezes se cria em torno do algoz. Essa narrativa não é apenas ficção, ela reflete dinâmicas reais de relações marcadas pelo machismo, pela misoginia e, em casos extremos, pelo feminicídio. No Brasil, essa realidade tem se mostrado brutal.

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Em Cuiabá, a menina Heloysa Maria de Alencastro Souza, de apenas dezesseis anos, foi assassinada brutalmente em um caso que chocou a capital cuiabana. Assim como Heloysa, outras seis mulheres foram vítimas de feminicídio em vinte e quatro horas no Rio Grande do Sul durante a Sexta-feira Santa, um dado alarmante que demonstra como a violência de gênero está naturalizada em nossa sociedade.

O que conecta essas tragédias ao enredo de “YOU” é a forma como tudo parece começar de maneira inofensiva, até encantadora. O homem se mostra cuidadoso, interessado, protetor. O ciúme, a princípio, é interpretado como prova de amor, “ele se importa tanto comigo!”. Pequenas invasões de privacidade, manipulações sutis e controle disfarçado de cuidado vão se acumulando.

Quando a mulher se dá conta, está presa em uma relação tóxica, e o que parecia amoroso se revela um ciclo de abuso que, muitas vezes, termina no ápice do assédio, o feminicídio. As mulheres vivem hoje em constante estado de alerta. Estão inseguras para confiar, para se relacionar, para simplesmente existir.

Esse medo não é infundado, é produto de um machismo estrutural que ainda permeia todas as esferas da sociedade. É o mesmo machismo que relativiza agressões, que pergunta o que a vítima estava vestindo, que tenta justificar o ciúme como sinal de paixão. A série “YOU” escancara, mesmo que sem essa intenção declarada, o quanto estamos condicionados a enxergar certos comportamentos abusivos como demonstrações de afeto. Joe Goldberg, com sua aparência de bom moço e discurso sensível, simboliza o perigo oculto em uma cultura que naturaliza a violência contra a mulher e romantiza o controle masculino sobre suas vidas.  

Ainda vivemos em uma sociedade onde a desigualdade de gênero é gritante. As mulheres continuam a ganhar menos, ocupar menos espaços de poder e serem mais responsabilizadas pelos fracassos das relações. Além disso, são minoria nos cargos de liderança política e empresarial, enfrentam maiores obstáculos para acessar educação de qualidade em várias regiões, e são freqüentemente invisibilizadas nas decisões que impactam suas próprias vidas. Mulheres também têm sua autonomia constantemente ameaçada, sendo desestimuladas a denunciar abusos por medo da revitimização, e muitas vezes enfrentam um sistema de justiça que ainda as trata com desconfiança.

O caso de Heloysa Maria e o assassinato das seis mulheres no Rio Grande do Sul, são lembretes cruéis de que essa história, que começa com promessas de amor eterno, pode terminar em tragédia. Precisamos romper o ciclo. Precisamos enxergar o que está por trás do “cuidado” excessivo, do ciúme possessivo, das pequenas violências cotidianas que, juntas, formam a base do feminicídio.

Denunciar o abuso, desconstruir o machismo, proteger as mulheres e educar para o respeito e a igualdade não são tarefas opcionais, são medidas urgentes para que histórias como essas parem de se repetir. E é fundamental reconhecer que enquanto persistirem as desigualdades entre homens e mulheres no trabalho, na política, na educação, na justiça e no espaço doméstico, a violência de gênero continuará a ser uma tragédia anunciada. Combater o feminicídio é, também, lutar para eliminar essas desigualdades em todas as suas formas.    

Christiany Fonseca é professora no IFMT e Doutora em Sociologia  

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