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Cidades Sexta-feira, 21 de Março de 2025, 08:43 - A | A

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MÉTODO POLÊMICO

Cidade de MT diz ter 83% de alunos alfabetizados com 'método rápido alemão'

g1

Os defensores de um método de alfabetização desenvolvido na Alemanha e vendido no Brasil usam a experiência observada no município de Alta Floresta (MT) para atestar que, com uma técnica de repetição de sons, é possível ensinar crianças a ler e a escrever em apenas 4 meses. O que é divulgado como "sucesso absoluto" e difundido para outras redes de ensino, no entanto, não foi verificado por índices oficiais do Ministério da Educação (MEC).

De acordo com a Secretaria de Educação de Alta Floresta, em 2022, após um ano de implementação do chamado "IntraAct Brasil", a porcentagem de crianças do 2º ano alfabetizadas teria saltado de 35% para 83%.

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A avaliação do MEC mais próxima disso é o indicador Criança Alfabetizada, que usa dados de 2023. Ele foca na mesma faixa etária e mensura os conhecimentos dos alunos em língua portuguesa. O resultado é bem diferente: Alta Floresta teve apenas 53,5% dos alunos da rede pública com conhecimentos adequados na disciplina. É uma taxa ainda menor do que a média nacional (56%). Entenda mais abaixo.

Abaixo, nesta reportagem, entenda os seguintes pontos:

por que a técnica gera embate entre as diferentes correntes da educação;
os detalhes do método e os resultados já registrados;
os pontos fortes apresentados pelos defensores;
e as críticas feitas por pesquisadores, principalmente a respeito da suposta limitação da criatividade e da "robotização" da aprendizagem.

Por que é uma técnica 'polêmica'?

O método baseia-se na neurociência para defender que a chave da aprendizagem é a repetição (veja mais detalhes na próxima seção do texto). E é justamente esse princípio de "automatizar" a aquisição de conhecimentos que virou alvo de críticas. No IntraAct, as crianças precisam reproduzir os sons de 4 letras por 15 minutos, três vezes ao dia, ao longo de 3 semanas. Só depois disso, a turma é apresentada a uma outra pequena parte do alfabeto.

Para educadores consultados pelo g1, há as seguintes fragilidades:

A técnica ensina a decifrar códigos, mas, por apresentar aos alunos palavras fora de contexto, pode não desenvolver a capacidade de interpretação de texto e a criatividade das crianças.

No Brasil, o passo a passo a ser seguido pelo professor só é divulgado mediante a compra do "pacote" de materiais didáticos (mais de R$ 600 por aluno).

A crença de que mudar o método das escolas seria a solução para os problemas de leitura e escrita no Brasil é ilusória, já que há outros fatores que determinam o fracasso na educação atual, como a formação de professores deficitária, a falta de incentivo à carreira docente e as falhas na estrutura dos colégios.

“De tempos em tempos, aparece um método que promete mundos e fundos, como se a solução [para o nosso problema] fosse milagrosa. Mas é preciso olhar o contexto maior e investir principalmente na formação dos professores”, defende Elaine Vidal, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).

Segundo ela, o que está sendo vendido como uma técnica revolucionária parece ser apenas uma “nova roupagem” do método fônico (defendido pelo Ministério da Educação durante o governo Bolsonaro).

“Não há nada de inovador nisso. Os métodos sintéticos [entenda mais abaixo] existem desde o século XIX. A alfabetização baseada na memorização pode, de fato, tirar uma criança do analfabetismo total, porque ela vai decifrar sons e palavras. Mas é preciso analisar: ela vai saber interpretar o texto que acabou de ler? Vai atribuir sentido a ele?”, questiona Vidal.

Irene Duarte, professora responsável por trazer o IntraAct para o Brasil, diz que, de fato, "há críticas, mas que elas podem ser derrubadas".

"O método foi criado para pessoas com transtornos de aprendizagem [como dislexia e TDAH], mas a gente recomenda para todas. É uma forma de aprender muito rapidamente a ler. E sem gaguejar”, afirma.

De acordo com ela, os resultados das turmas após a aplicação do IntraAct foram muito positivos. "Testei em uma escola pública de Alta Floresta e foi lindo. No fim de 2021, mesmo com a pandemia, eu tinha as 33 crianças lendo, inclusive uma indígena que não falava português e uma menina com deficiência intelectual", conta Irene.

Como funciona o IntraAct?
 
O método, baseado na neurociência, foi fundado pelos alemães Uta Streit e Fritz Jansen há mais de 30 anos. O objetivo inicial, como já explicado mais acima, era alfabetizar pessoas com dislexia, transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) ou autismo.
Veja como funciona:

O professor apresenta aos alunos um grupo de 4 letras de cada vez, começando pelas que são pronunciadas mais facilmente (A, M, L, O). Ao longo de 3 semanas, a turma repetirá o som de cada um desses caracteres.

O objetivo é tornar automática a associação do “M” ao som de “mmmm”, por exemplo. Aos poucos, o aluno formará palavras e pseudopalavras usando essas 4 letras: lama, loma, amo etc.

“A aula tem 4 horas. Em 3 tempos de 15 minutos, a gente repete os sons das letras. Esse processo [de aprendizagem] precisa ser de fora pra dentro, precisa ser colocado na cabeça das crianças. A gente vai instalar as 26 letras do sistema alfabético na região occipital do cérebro [responsável pelo processamento visual das informações]”, explica Irene Duarte.

A orientação é que palavras escritas com outras letras ainda não sejam apresentadas para as crianças, segundo a cartilha de Streit e Jansen.

Depois de 21 dias, outras 4 letras são ensinadas: F, S, I e N. O aluno passa a escrever “nana”, “lona”, “fama” e termos que não existem, mas que usam essas sílabas.

Após cerca de 4 meses, todo o alfabeto terá sido mostrado. Em tese, a criança terá desenvolvido consciência fonológica e saberá ler e escrever com fluência.

O processo é focado na memorização. As crianças veem a letra “A”, por exemplo, 5 vezes, por meio de um papel recortado que forma uma espécie de “janelinha”— ela é deslizada da esquerda para a direita, na intenção de condicionar o cérebro a ler sempre nesse sentido (veja a imagem abaixo). No meio das sequências, aparecem outros elementos, como um quadrado roxo, para só depois voltar à letra “A”. Assim, é possível exercitar a memória e fixar o que foi aprendido mesmo após "interrupções"

O que os números dizem sobre o IntraAct?

A Secretaria de Educação de Alta Floresta, cidade onde Irene aplicou pela primeira vez o IntraAct, alega que, antes de adotar o método, apenas 35% das crianças eram alfabetizadas até o fim do 2º ano do ensino fundamental. No fim de 2022, após um ano da implementação da técnica, o índice teria subido para 83%.

O g1 entrou em contato com a Secretaria de Educação do município para saber qual foi a metodologia usada na avaliação, já que, nos materiais públicos de divulgação, não há nenhum detalhamento. Em resposta, o órgão afirmou que foram utilizadas "ferramentas como avaliação municipal e avaliação estadual, dentro do programa Alfabetiza Mato Grosso".

São números que destoam dos apresentados pelo MEC, como mostrado no início da reportagem. O Indicador Criança Alfabetizada indica que apenas 53,5% das crianças de Alta Floresta, do 2º ano do ensino fundamental, demonstraram ter conhecimentos adequados em língua portuguesa em 2023.

Segundo a secretaria estadual, os dados do MEC foram baseados apenas em escolas da rede particular de ensino. Mas, quando consultada pelo g1, a pasta reforçou que são números censitários, colhidos em escolas públicas pelo Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb).

Lucineia Mazzoni, secretária de Educação do município, alega que, em 2023, a rede municipal recebeu alunos do 2 ao 5º ano oriundos de colégios estaduais. "Isso impactou diretamente os resultados. Em 2025, a expectativa é que o resultado positivo do programa se amplifique, refletindo um avanço mais significativo na alfabetização", diz.

Observação: Apesar de haver esse índice insatisfatório no Indicador Criança Alfabetizada, o MEC concedeu à cidade o Selo Nacional Compromisso com a Alfabetização, por considerar que houve “o desenvolvimento de ações integradas em nível territorial, a institucionalização de políticas de alfabetização, a formação contínua de professores e a distribuição de materiais didáticos”.

Qual é a diferença entre aprender com cartilha ou com textos 'reais'?
 
Em geral, há duas formas de enxergar esse processo de aprendizagem: pensar na língua como objeto cultural, sempre contextualizada e com sentido; ou ver a escrita como um sistema de códigos, que exige certo distanciamento para ser compreendido.

São interpretações não necessariamente excludentes — uma pode complementar a outra. Mas alguns métodos optam por priorizar um desses aspectos. 

Métodos sintéticos: As antigas (mas ainda usadas) cartilhas, por exemplo, ou o próprio IntraAct aproximam-se mais de uma visão técnica — o aluno começa a aprender por uma pequena parte (seja o som de cada letra ou de cada sílaba) para só depois combinar tudo e formar palavras. “Be-bê”, “Ba-bá”.

Métodos analíticos: Outra abordagem, defendida mais acima pela professora da USP, propõe uma reflexão sobre o uso social da língua: o aluno vai entrar em contato com textos reais (histórias, parlendas) para só depois olhar para as suas partes (palavras, sílabas, sons). A prioridade é a compreensão dos significados, sempre próximos ao universo infantil.

Não há uma determinação que obrigue as escolas a adotar um ou outro método no Brasil

Quais as críticas dirigidas ao método? E como os apoiadores se defendem?

1- 'As crianças viram pequenas máquinas que repetem sílabas sem sentido.'

Isabel Frade, presidente emérita da Associação Brasileira de Alfabetização e professora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), diz que o processo de aprendizagem realmente deve incluir a habilidade de decifrar e registrar sons em letras — mas não pode se limitar a isso.

“Consideramos o funcionamento do cérebro, mas e a parte social? É como se isolássemos a criança de todos os outros fenômenos para que ela consiga decodificar letras em 4 meses”, afirma. “A aprendizagem precisa acontecer a partir de usos sociais da escrita, como os textos.”

Elaine Vidal, da USP, concorda. “Não estamos só decifrando sons na leitura: estamos atribuindo sentindo para aquilo. Por trás de um cérebro que memoriza, há uma criança que pensa”, diz.

Streit, Jansen e Angelika Fuchs, autores do material didático do IntraAct na Alemanha, argumentam que a automação é um pré-requisito para que as habilidades de leitura e de escrita sejam desenvolvidas. Segundo esses estudiosos, apresentar o texto de um livro infantil a uma criança que ainda não é alfabetizada pode “sobrecarregá-la” com tantas letras ainda desconhecidas.

'Os alunos não vão praticar a autodescoberta nem exercitar a criatividade.'

Suponha que a criança esteja no primeiro mês de alfabetização pelo método IntraAct. Ela conhecerá, até o momento, apenas quatro letras: A, M, L e O.

“Ela certamente vai querer escrever seu nome, o nome dos pais ou dos animes de que ela gosta. Se não for possível com essas letras, o que fazer? Isolar o ensino do alfabeto em relação à vivência das crianças não é legal”, explica Frade.

Irene, professora do IntraAct mencionada no início da reportagem, conta que, nesses casos, não esconde a resposta do estudante: se o nome a ser escrito for “Flávia”, por exemplo, ela opta por escrever a palavra em um papel e pedir para que o aluno copie, mesmo sem conhecer o F, o V e o I.

“São só 4 meses até ela saber o alfabeto inteiro. A crítica existe, mas a gente derruba. Não considero que esse método limite [a turma]. No segundo bloco de letras, ela já vai conseguir formar frases”, afirma.

Em metodologias analíticas, como já explicado, o aluno vai entrar em contato com textos e, aos poucos, elaborar suas hipóteses a respeito dos sons das letras e da construção de palavras e frases. Como o processo está dentro de um contexto (interesse pela história, dinâmica com os amigos), a criança aprende a ler “atribuindo sentido àquilo”, explicam as pesquisadoras.

Já na visão do método fônico ou do IntraAct, estimular a construção de hipóteses é desrespeitar o ritmo de desenvolvimento cerebral infantil. “Nós aprendemos pelo conhecimento visual de associação ao som. Biologicamente, aprendemos por repetição. Trazer todas as letras de uma vez só é um grande erro”, diz Irene, de Alta Floresta.

O livro sobre a metodologia do IntraAct diz que “a autodescoberta pode ser desafiadora e motivadora, mas também é particularmente ruim sobrecarregar uma criança assim”.

Qual é a solução, então?

Todos os especialistas entrevistados nesta reportagem — sejam críticos ou defensores do IntraAct — concordam em um aspecto: o problema da alfabetização do Brasil não é essencialmente o método usado nas escolas.

Outros fatores, mais importantes, necessitam de reparo, como:

a formação frágil de professores, principalmente após o crescimento da educação à distância;
as desestimulantes condições de carreira oferecidas aos docentes, com baixas remunerações e sobrecarga de trabalho;
a falta de estrutura e de material didático adequados nas escolas da rede pública.

 

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