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Mundo Domingo, 18 de Agosto de 2024, 15:00 - A | A

Domingo, 18 de Agosto de 2024, 15h:00 - A | A

EDUCAÇÃO FÍSICA CHINESA

Pular corda mil vezes, marchar aos 6 anos e fazer "maratona" em escada

g1

Já estamos acostumados a ver a China nas primeiras posições do quadro de medalhas olímpicas -- em Paris, os 40 ouros, 27 pratas e 24 bronzes levaram o país à vice-liderança mundial, atrás apenas dos Estados Unidos.

A apresentação das meninas chinesas do nado sincronizado, por exemplo, de uma perfeição que impressionou os técnicos (e o mundo) na última semana da competição, fez com que brasileiros buscassem uma explicação para a habilidade das atletas: “devem ter aula de educação física desde os 2 anos!”. Será?

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O g1 foi atrás da resposta e descobriu que, de fato, o modo como o governo e as escolas da China encaram a prática de esportes é bem diferente dos nossos padrões. Dizer que os bebês começam a se exercitar aos 2 anos é exagero, mas tenha certeza de que a vida das crianças não é, digamos, fácil.

“Normalmente, as aulas de educação física são realizadas com os alunos em filas. Não é como se corressem para o campo e começassem a jogar bola”, explica ao g1 a antropóloga finlandesa Anni Elisa Kajanus, que estuda questões sociais da China na Universidade de Helsinque.

Abaixo, veja um resumo das principais características da educação física chinesa:

De novo e de novo. “A repetição é muito importante, porque os chineses acreditam que atividades assim criam uma pessoa virtuosa e ética, explica a pesquisadora. Pular corda mil vezes e filmar, por exemplo, pode ser a lição de casa das crianças, como conta o atleta brasileiro Mateus Martins, que desenvolve um projeto esportivo na China há quase 20 anos [leia mais abaixo].

Uma etapa por vez. Normalmente, nas escolas chinesas, cada exercício é ensinado em três fases diferentes e independentes. No Brasil, aprendemos a pular corda… pulando corda, certo? Lá, há outra abordagem pedagógica. Primeiro, o aluno aprende a rotacionar a mão, sem segurar nada. Só depois, pulará no chão. E, por último, na etapa 3, juntará tudo e efetivamente tentará pular a corda.

“É sempre assim: uma atividade mais simples para depois construir uma mais complexa. Na Europa, agimos diferente: nossa ideia é dar a compreensão do todo, do jogo completo, para incentivar que a criança entenda como tudo se conecta”, afirma Kajanus.

Professor como instrutor sempre presente. Nas escolas chinesas, docentes são muito respeitados pelos estudantes – não há problemas de indisciplina. E o papel deles não é apenas demonstrar conhecimento, mas também dar conselhos e instruções detalhadas à turma.

“Se o professor der uma bola para as crianças e disser ‘ok, nos vemos em 20 minutos’, isso vai ser visto como pouco profissional, como se ele não se importasse [com as crianças]”, analisa a pesquisadora da Finlândia.

Marchando desde pequenos. Os esportes tornaram-se mais populares na China a partir da década de 1950, por iniciativa do Partido Comunista. Naquela época, a educação física das massas era vista como uma forma de preparação para a guerra.

“Até hoje, as práticas militarizadas ficam muito evidentes. Os professores comentam que precisam ensinar primeiro os conceitos básicos, como marchar ao ritmo da música, para que tenham o controle das crianças pequenas. Só depois que elas passam a praticar esportes”, afirma Kajanus.

Rigidez máxima. Não há espaço para falhar. Segundo Mateus Martins, a exigência dos pais e das autoridades não se aplica somente às cerca de 16 horas diárias de estudo nas escolas: ela estende-se também ao desempenho na educação física.

“Se a família acha que o aluno pode ser um campeão, dependendo das condições financeiras, matricula a criança em todas as escolinhas de esporte possíveis, até no fim de semana. E os professores reproduzem com alunos pequenos o que está sendo feito nos melhores clubes do mundo, como o Barcelona. Pode ser exaustivo”, diz.

Cuidado com a saúdeSegundo o Ministério da Educação chinês, desde 2011, uma reforma curricular nas escolas passou a incluir o componente de “saúde” com mais ênfase nas aulas de educação física. Entre os objetivos, estavam promover o desenvolvimento físico das crianças e dos adolescentes e melhorar os índices de sobrepeso registrados em levantamentos nacionais.

Esporte também é política

É importante notar também o modo como a política acaba interferindo na prática de esportes na China. Um exemplo: em 2016, em decisão inspirada nas ideias do ex-líder Mao Tsé-Tung (1893-1976), o futebol passou a ser rapidamente implementado nas escolas para tentar tornar o país uma potência também nessa modalidade (e projetá-lo internacionalmente).

“Nas escolas, a educação física é vista como importante porque traz um componente físico, mental e espiritual. Quando falamos dos esportes de alta performance, ainda entra um quesito de soft power, de mostrar ao mundo do que a China é capaz. Resumindo, o sucesso nessa área é uma forma de exibir força nacional, elevar a saúde da população – até para casos de eventuais guerras – e alcançar projeção no mundo”, afirma Kajanus.

No início da reportagem, explicamos como a repetição de exercícios é levada a sério na China.

Veja só um exemplo prático contado pelo atleta brasileiro Mateus Martins, de 45 anos [citado no começo do texto], que mora há quase 20 anos em Dongguan, na província de Catão, no país asiático.

“Os exercícios que as crianças pequenas [a partir dos 6 anos] fazem envolvem subir e descer escadas várias vezes ou correr meia hora na quadra. De lição de casa, elas precisam levar a bola de basquete e quicar mil vezes. Ou pular corda mil vezes. Tudo é bem repetitivo e filmado para enviar ao professor”, conta.

Mateus, que jogava no time de futsal da cidade onde mora, criou o projeto “Futebol Feliz”: o objetivo, segundo ele, é mostrar às crianças que é possível se divertir na prática de esportes.

“As crianças já são muito pressionadas desde cedo. Não basta passarem de ano, precisam tirar 10 e entrar na melhor universidade. Elas nunca ‘respiram’ diversão na escola. É uma necessidade tão grande do resultado que o prazer de jogar já se foi”, conta.

Tanto na escolinha de futebol que abriu quanto em parcerias com o governo e com escolas, Mateus propõe uma maior leveza na atividade física. “Eu respeito muito o jeito deles [chineses], mas trago uma abordagem diferente. Não participo de competições e digo que todos os alunos são bem-vindos, melhores ou piores. Eles ficam encantados”, afirma.

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