Uma tragédia assombra os indígenas no Mato Grosso. A pandemia explodiu em todo o estado desde maio, e o cenário é tão grave que, ironicamente, pela primeira vez em 50 anos não haverá Kuarup, o ritual em homenagem aos mortos realizado pelos povos do Xingu. Mas a Covid-19 não é a única ameaça no horizonte. Uma decisão recente do procurador-geral da República sinaliza uma tempestade perfeita sobre suas terras. Em junho, Augusto Aras ignorou recomendações contrárias do próprio Ministério Público Federal (MPF) e convocou “todos os envolvidos” para discutir o caso da Terra Indígena (TI) Kayabi.
O estado de Mato Grosso quer de volta ao menos 80 mil hectares das terras Kayabi, na bacia do combalido rio Teles Pires, fronteira com o Pará. O governo estadual se colocou contra a demarcação assim que a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) a assinou, em abril de 2013. O governo paraense, por outro lado, não a contesta. A TI Kayabi se espalha por mais de 1 milhão de hectares entre Apiacás, no extremo norte mato-grossense, e Jacareanga, no Pará.
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Há muitos interesses em disputa nessas terras. Para o governo mato-grossense, elas já têm donos: grandes desmatadores da Amazônia, além do bilionário fundo canadense Brookfield. Áudios, documentos e relatórios obtidos pela Agência Pública revelam como os “envolvidos” convocados por Augusto Aras pressionam os indígenas a ceder os 80 mil hectares.
Até a Fundação Nacional do Índio (Funai) se vê embrenhada nas denúncias: um de seus servidores é criticado por apoiar um eventual acordo. As acusações respingam no ruralista Nilson Leitão (PSDB-MT), quando ainda era presidente da Frente Parlamentar Agropecuária no Congresso.
Tanto a Funai quanto o MPF sabem da gravidade do caso. O setor dedicado a questões indígenas no MPF – a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão – não recomenda acordos ou reuniões, mas um ajuste de contas com os invasores.
“O único acordo que se pode fazer no caso Kayabi é definir quando os intrusos sairão das terras”, disse à Pública o procurador Antônio Carlos Bigonha, responsável pela 6ª Câmara entre 2018 e junho de 2020. Ele afirmou também que as investidas contra a área são algo “completamente afrontoso, sobretudo por já ter sido demarcada” pela Presidência da República.
Segundo apurou a Pública, Aras ignorou os avisos e nem sequer consultou Bigonha, o que causou estranhamento nos que acompanham o caso. A convocatória foi publicada quando o procurador-geral estava bastante ocupado, trocando todos os coordenadores temáticos do MP. Suas escolhas geraram polêmicas, especialmente no caso do procurador Juliano Baiocchi, novo coordenador do setor de Meio Ambiente no MPF.
Procurada, a Procuradoria-Geral da República (PGR) disse que “as audiências públicas visam debater temas como desintrusão, indenizações e dirimir outros conflitos que porventura existam”. Informou ainda que o encontro foi adiado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux, por conta da pandemia.
O cancelamento, porém, não foi definitivo, como querem os indígenas. Não faltam motivos para estarem ressabiados com qualquer tipo de acordo.
Fundo estrangeiro reclama 75 mil hectares das terras – e Mato Grosso apoia
Tanto fazendeiros quanto a prefeitura propõem a diminuição de todas as terras indígenas em Apiacás há mais de 20 anos. As intrusões ali impressionam: somam uma área equivalente a três vezes o município do Rio de Janeiro, só sobre territórios do tipo, segundo o Serviço Florestal Brasileiro.
Durante esse mesmo período, a Agropecuária Vale do Ximari Ltda. luta incessantemente na Justiça para garantir suas posses. Ela alega ser dona das glebas Estância Jardim, Raposo Tavares I e II e Santa Rosa: são aproximadamente 75 mil hectares de floresta amazônica embrenhados nas terras Kayabi. Essa área insere um player de peso na história, o fundo canadense Brookfield.
Originalmente criado por estrangeiros no Brasil, ele ajudou a fundar a companhia de energia Light, do Rio de Janeiro, no início do século passado. Hoje, o grupo é controlado por uma teia de empresas registradas em paraísos fiscais, como no estado de Delaware, nos Estados Unidos, e nas Ilhas Cayman. A Agropecuária Vale do Ximari Ltda. é listada como uma de suas várias “sociedades sob controle comum”.
Discretamente, os canadenses são donos de ao menos 269 mil hectares no país, com fazendas no Maranhão, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais, entre outros, e mais de US$ 26 bilhões em investimentos. Aplicam em vários segmentos, como na produção de soja, em usinas de cana-de-açúcar e na pecuária – só em 2015, o Brookfield tinha um rebanho de mais de 40 mil cabeças de gado.
A Receita Federal confirma a relação entre os canadenses e a Agropecuária Vale do Ximari Ltda. O Ministério da Economia lista Esteban Fornasar, Luís Fernando Della Togna e Renato Cassim Cavalini como seus administradores, e o fundo Brookfield como único sócio.
O processo de reintegração de posse está empacado há anos na 3ª Vara da Justiça Federal em Cuiabá, com decisões favoráveis aos Kayabi. Para a Funai e a União, a fazenda do Brookfield em Apiacás pertence aos indígenas, que a retomaram após uma invasão.
O governo mato-grossense dá tanta razão aos estrangeiros que tomou parte nessa ação. Foi em 2009 que o estado pediu para entrar no processo, anos antes da demarcação. A Justiça autorizou, e o governo tornou-se um assistente do bilionário fundo na disputa. O governador era Blairo Maggi (Progressistas), ex-ministro da Agricultura e um dos homens mais poderosos do agronegócio no Brasil.
À Pública, a Brookfield alega ser “a única legítima proprietária e possuidora do imóvel” e diz que luta contra “invasões ilegítimas de indígenas desde 2007”. O grupo canadense garante que não desistirá das terras.
“Vocês vão passar a vida inteira dependendo dos outros”
Como muitos de seus parentes na Amazônia, os Apiaká, Kayabi e Munduruku carregam memórias dolorosas de um passado recente. Nos anos 1960, boa parte foi expulsa da região, onde viviam cercados por cachoeiras, corredeiras e ilhas, à beira do atual Parque Nacional do Juruena.
Militares os sequestraram durante os anos de chumbo, confinando-os no Parque Indígena do Xingu. O método foi repetido à exaustão no Mato Grosso, como na área da Terra Indígena Marãiwatsédé, dos Xavante.
A vida foi uma luta árdua para os que ficaram. Os Kayabi mais velhos não se esquecem do tempo em que viviam escondidos sob as copas de árvores, como castanheiras e copaibeiras, com medo de que também fossem vistos e raptados. São os anciões quem mais resistem às investidas atuais sobre suas terras, já sufocadas por hidrelétricas na região.
A defesa dos territórios indígenas é um dos pilares da Funai. Mas nesse caso um de seus funcionários é acusado de fazer o exato oposto.
Servidor desde os anos 1980, Francisco das Chagas Lopes Rocha trabalhou junto às comunidades, entre 2014 e abril de 2020. Foi logo após, em maio, que ele saiu do anonimato, quando nomeado para uma das chefias da Frente de Proteção Etnoambiental Madeirinha-Juruena.
Lopes Rocha recusou o cargo três dias após a indicação, depois que sua atuação junto aos Kayabi veio à tona. Ele dizia aos indígenas que só teriam paz quando negociassem a porção mato-grossense de suas terras.
“Em volta, todo mundo cria gado, planta soja, planta milho, planta algodão”, afirmou a lideranças, antes de avisá-las de que tinham “um problema muito grande nas mãos”. “Vejo que vocês, aí do Kayabi, continuam nessa situação, calados. Esperando o quê, gente?”, diz Lopes Rocha, em material obtido pela Pública.
Em 2016 a Funai alertava sobre “conflitos sociais e fundiários com os não índios ainda instalados” na TI Kayabi, tida como “muito sensível”. “A incerteza aumenta a tensão e abre espaço para a violência, com risco inclusive para os servidores que atuam no local”, diz o MPF.
A atuação de Lopes Rocha rendeu queixas, afastamento temporário de 60 dias e um inquérito da Polícia Federal (PF), hoje arquivado.
As denúncias sugerem que ele “[fez] com que lideranças jovens acreditem que podem negociar a área com fazendeiros” em troca de benfeitorias, como uma Casa de Apoio à Saúde Indígena e a ampliação da rede de energia elétrica. “Vocês nunca vão ter liberdade para fazerem o que quiserem, quando quiserem, a hora que quiserem. Vocês vão passar a vida inteira dependendo dos outros”, diz Lopes Rocha.
Em depoimento à PF, ele defendeu um acordo “entre Estado de Mato Grosso e União, com a participação dos indígenas” e disse que decisões do ministro Luiz Fux sobre as terras Kayabi provavam que ele “está certo”.
Há outras acusações, ainda mais graves. Há denúncia de manipulação de crianças nas aldeias, pagando-lhes R$ 60 para que colhessem assinaturas sem lhes explicarem nada.
O material endossaria uma carta favorável à diminuição da TI, “afirmando que a comunidade deseja oferecer uma proposta pelas terras objeto de conflito (80 mil hectares ocupados por fazendeiros)”, segundo a PGR.
A Procuradoria da República pediu o arquivamento do inquérito no último dia 13 de maio. Ela alega que “não há elementos que comprovem que ele [Lopes Rocha] esteja patrocinando interesse privado”, ou seja, intercedendo em favor dos fazendeiros.
À Pública, a defesa do servidor alega que desconhece as denúncias e que, “somente após conhecer formalmente tais acusações, tais perguntas poderão ser devidamente respondidas”. Lopes Rocha disse ainda que “reitera seu total compromisso com a defesa intransigente dos direitos dos povos indígenas”. O servidor permanece no Mato Grosso, lotado na coordenação da Funai em Cuiabá (MT).
A política nos bastidores
Durante conversas com os Kayabi, Lopes Rocha trazia um político à história. Segundo ele, jovens líderes lhe pediam que intercedesse junto ao ex-deputado Nilson Leitão (PSDB). Queriam conversar sobre suas terras com ninguém menos que o então presidente da bancada ruralista no Congresso.
“Se ele [Nilson Leitão] é inimigo, então todo mundo é inimigo: o prefeito, os proprietários, os moradores da cidade, todo mundo pensa diferente do índio”, dizia. “Se eles quiserem fazer, vamos procurar fazer tudo dentro da lei”, também afirma o servidor, antes de garantir que, pela Funai, “já pediram agenda e estão aguardando a confirmação da data” com o ruralista, diz o trecho de um áudio obtido pela reportagem.
Leitão é um entusiasta de acordos como esse, vantajosos aos fazendeiros. Em abril, o ruralista saudou o presidente da Funai, Marcelo Xavier, por permitir a certificação de fazendas em áreas sob demarcação. Só no Mato Grosso, a medida pode abocanhar mais de 480 mil hectares de terras indígenas, contando somente os latifúndios que as invadem.
Leitão e Xavier falam a mesma língua no tema. Talvez seja por conta de seu trabalho conjunto na CPI da Funai e do Incra, em 2017. O líder ruralista relatou as atividades, enquanto Xavier era um dos assessores na comissão. O relatório final criminalizou 67 indígenas, antropólogos, procuradores da República e defensores dos povos originários, incluindo desafetos de ambos no Mato Grosso.
Enquanto isso, o governo lidera uma ofensiva contra áreas indígenas no estado. O atual governador, Mauro Mendes (DEM), patrocina uma lei que certifica fazendas em todas as terras, em vias de aprovação pelos deputados estaduais. O projeto foi lançado dias depois da nova diretriz da Funai, celebrada por Nilson Leitão.
Procurado pela Pública, o ruralista não comentou o caso dos Kayabi nem sua relação com Lopes Rocha, dizendo apenas que recebeu “diversas lideranças indígenas durante os trabalhos da CPI”. Já o servidor disse que “conheceu o ex-deputado em 2017, durante uma audiência pública realizada na Câmara dos Deputados, em Brasília”, mas que não é próximo dele.
Desmatadores e latifundiários à espreita
Para o governo estadual, as terras Kayabi têm vários donos. Em sua maioria são empresários do Sudeste, do Sul e outros fazendeiros que esperam por um acordo, longe dos holofotes. Grande parte deles se apossou da área enquanto indígenas eram expulsos pelos militares, há mais de 50 anos.
Latifundiários como Jeremias e Moisés Prado dos Santos se estabeleceram nesse ponto da Amazônia ao longo do tempo. Eles partilham o registro de duas fazendas, Matão e Paredão, que, juntas, invadem mais de 13 mil hectares do território Kayabi. É mais de um terço do total invadido, segundo dados do governo mato-grossense.
Outro intruso é Jair Roberto Simonato, dono das fazendas Olho d’Água e Santa Laura Xibanti. Somadas, invadem outros 8,8 mil hectares. Ele é um conhecido pecuarista na região, tido como um dos maiores desmatadores da Amazônia desde os anos 2000.
Em 2006, a PF acusou Jair, Jeremias e Moisés de grilar as terras dos indígenas. Para o Ibama, eles também são responsáveis por desmatar ilegalmente a área durante anos.
Simonato foi punido em mais de R$ 20 milhões, enquanto Jeremias e Moisés somam mais de R$ 16,5 milhões em crimes contra a flora. Considerando apenas as fazendas autodeclaradas dentro da terra indígena, há ao menos R$ 48,5 milhões em multas por desmatamento ilegal – os três ostentam as maiores delas. Os dados do Ibama foram organizados pelo observatório De Olho nos Ruralistas.
Garimpos geram milhões e mortes
Garimpeiros se aproveitam das diferenças entre as etnias para costurar acordos ilegais, levando o que podem. A cobiça é alta graças às reservas de ouro dentro do território indígena. A Funai e o Ministério Público sabem dessa verdadeira ofensiva há anos.
“Desde agosto de 2016 a Funai vem alertando sobre a existência de queixas dos índios”, diz o MPF, que ainda descreve um preocupante aumento de atividades proibidas na região, com “balsas de mineração no rio São Benedito”.
Em 2012, uma desastrosa operação da PF revelou um esquema que movimentava milhões em extração ilegal de ouro na região. O ouro era retirado, “lavado” e vendido a um grupo de investidores em São Paulo. Segundo a PF, “uma das empresas movimentou mais de R$ 150 milhões” só durante a investigação.
Um dos alvos foi Cacildo Jacoby, presidente da Cooperativa de Garimpeiros da Amazônia (Coogam). Ele acabou denunciado por formação de quadrilha, usurpação dos bens da União, poluição e extração de bens minerais sem autorização do órgão competente. Esta cooperativa mantém três pedidos à Agência Nacional de Mineração para garimpar na TI Kayabi, abertos em 2008 e 2012.
Mas a investigação sobre os garimpos terminou em tragédia. A Operação Eldorado deixou como saldo acusações de tortura, dezenas de baleados e machucados, crianças desaparecidas, barcos e outros bens destruídos.
No dia seguinte à operação, Adenilson Kirixi Munduruku foi encontrado boiando no rio Teles Pires, com três tiros nas pernas e um, mortal, na cabeça. Para o MPF, o delegado federal Antônio Carlos Moriel Sanchez o executou, à queima-roupa.
A Justiça Federal de Itaituba (PA) o absolveu, mas o MPF recorre. Em fevereiro passado ocorreram turbulentas audiências sobre o caso, ainda sem decisão definitiva, como relatado pelo portal Amazônia Real