Dollar R$ 5,59 Euro R$ 6,07
Dollar R$ 5,59 Euro R$ 6,07

Opinião Sexta-feira, 14 de Junho de 2024, 08:54 - A | A

Sexta-feira, 14 de Junho de 2024, 08h:54 - A | A

RAISSA ANBO

Por que a Alta Performance não é feita para mulheres

Raissa Anbo*

Nos últimos anos, a busca pela alta performance tem se tornado um mantra no ambiente corporativo. Livros, palestras e cursos sobre o tema não param de surgir, prometendo transformar qualquer pessoa em uma verdadeira máquina de produtividade. No entanto, uma análise mais profunda revela um detalhe muito importante: a maioria desses conteúdos são criados por homens e para homens. E isso não é coincidência, não. As demandas e responsabilidades enfrentadas por nós, mulheres, no dia a dia, tornam praticamente impossível seguir os passos elaborados por esses “gurus”.

Eu tive uma experiência que ilustra bem essa questão. Quando eu era estagiária, fui convidada pela minha empresa para participar de um Workshop de Gestão do Tempo. O objetivo era nos ensinar a incluir todas as nossas tarefas diárias em uma agenda organizada, inclusive horários para: comer, ir ao banheiro e até brincar com os filhos. Na época, já achei o discurso meio estranho, mas hoje, mais velha e com mais responsabilidades, concluo que é simplesmente impossível para nós, mulheres, seguirmos esse modelo.

- FIQUE ATUALIZADO: Entre em nosso grupo do WhatsApp e receba informações em tempo real (clique aqui)

- FIQUE ATUALIZADO: Participe do nosso grupo no Telegram e fique sempre informado (clique aqui)

Afinal, quem fica com os filhos enquanto não chega o horário da agenda que reservamos para tal? Acho que já sabemos a resposta. Mesmo que nós, mulheres, tenhamos carreiras tão exigentes quanto as de nossos parceiros, infelizmente, ainda é o mais comum as responsabilidades domésticas e de cuidados com os filhos recaírem, desproporcionalmente, sobre nós.

A Diferença entre as Responsabilidades

Muitos dos principais livros e influenciadores sobre alta performance, como "Trabalhe 4 Horas por Semana" de Tim Ferriss, "Trabalho Focado" de Cal Newport e "Hábitos Atômicos" de James Clear, foram escritos por homens. Suas estratégias partem de uma premissa de disponibilidade e 100% de controle sobre o seu tempo, além do foco, que raramente é acessível para mulheres. Ignoram completamente a carga mental e as responsabilidades adicionais que temos.

Estudos mostram que, em média, as mulheres dedicam significativamente mais tempo às tarefas domésticas e ao cuidado dos filhos do que os homens. Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), as mulheres gastam duas a dez vezes mais tempo em tarefas não remuneradas do que os homens. Isso inclui: cozinhar, limpar, cuidar de crianças e idosos, entre outras atividades.

Essas responsabilidades extras tornam o modelo de alta performance propagado por esses autores, quase impraticável para nós. Afinal, como seguir uma rotina de produtividade, que exige horas de foco ininterrupto, quando você é constantemente interrompida por demandas de vários setores da vida diferentes e ao mesmo tempo? Como priorizar um "tempo de qualidade" agendado para brincar com os filhos quando você é quem prepara o jantar, ajuda com o dever de casa e cuida dos detalhes do dia a dia?

Reflexões Pessoais

Voltando à minha experiência no curso de Gestão do Tempo, fiquei me questionando sobre a viabilidade de aplicar aqueles conceitos à minha realidade, que ali nem era tão dura ainda. Quem, afinal, consegue seguir um planejamento tão rígido quando as demandas da vida real são tão fluidas e imprevisíveis? Mais do que isso, percebi que, enquanto tentávamos nos moldar a um ideal de alta performance, ignorávamos a contribuição silenciosa, mas crucial, das mulheres que mantêm a estrutura necessária para que esses "altamente produtivos" homens prosperem.

Lembro de uma colega que, ao final do curso, desabafou: "Bom, para eu conseguir fazer isso, eu preciso parar de dormir e de fazer qualquer outra coisa além disso". Esse comentário me fez perceber que a alta performance vendida não leva em conta a realidade multifacetada da maioria das mulheres. Em vez de nos ajudar a sermos mais eficientes, esses modelos muitas vezes nos sobrecarregam ainda mais.

A Realidade das Mulheres

É essencial reconhecer que a alta performance, da maneira como é disseminada, não é inclusiva. Ela ignora a realidade das mulheres que, além de suas carreiras, carregam o peso das responsabilidades extras. Essa visão estreita de produtividade reflete ainda mais o padrão da sociedade em que vivemos, que tampa os olhos para a nossa exaustão física e mental.

As soluções propostas por esses autores são muitas vezes baseadas em uma visão simplista da vida, onde o tempo é um recurso facilmente gerenciável e as distrações são apenas questões de disciplina, basta você querer.

Conclusão

Diante de tudo isso, eu só consigo concluir que os livros de alta performance são escritos de homens para homens. Eles ignoram as realidades vividas por muitas mulheres, que equilibram carreira, responsabilidades domésticas e cuidado familiar. Graças a nós, muitos desses homens conseguem alcançar seus altos rendimentos.

Precisamos de um novo modelo de alta performance, que seja inclusivo e realista, levando em conta as diversas responsabilidades e desafios enfrentados pelas diferentes realidades. Um modelo que valorize não apenas a produtividade, mas também o bem-estar e a equidade de gênero. Somente assim poderemos construir um ambiente de trabalho verdadeiramente justo e eficiente para todos.

*Raissa Anbo é especialista em marketing pela USP/Esalq, com MBA em Gestão de Negócios pela Universidade de Cuiabá. Coordenadora de Marketing e de Pessoas. www.linkedin.com/in/raissaanbo/

search