O título deste artigo é homônimo ao conto de Guimarães Rosa. Um conto espetacular sobre a história de um sertanejo, pai de família, que resolve fazer uma pequena canoa e ir viver no meio do rio.
Na realidade objetiva e material, o rio comporta apenas duas margens. Guimarães Rosa nos provoca a pensar outras possibilidades de existência e, questiona velhos dramas e conflitos da existência humana.
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Tomo emprestada a metáfora da terceira margem para falar de minha posição na Câmara dos vereadores(as) de Cuiabá: entre a base do prefeito e a oposição bolsonarista.
No início do ano, meu “batismo” neste espaço de poder foi a votação da moção de aplauso à chacina de Jacarezinho (RJ). De lá para cá, tenho aprendido a conviver com os opostos, divergentes, diferentes, contornando o sofrimento e me relacionando com o que há de humano em cada um/a.
Desde o começo, o que mais me chama a atenção são os mecanismos que operam o rebaixamento do Poder Legislativo e, com isso, a fragilidade do sistema representativo. O que explica muito o fato de ser eu a primeira vereadora negra de Cuiabá. Os privilégios de uma minoria só se mantêm, justamente, pela interdição da maioria no acesso ao poder.
Nesta última semana antes do Natal, a votação de matérias foi frenética como se tudo realmente fosse urgente. Não era. Mas, a razão de tanta exaustão se revela ao final: os projetos de final de ano do Executivo: PPA, Prêmio Saúde, Verba indenizatória para cargos comissionados, cobrança de taxa de coleta de lixo (para somar com a taxa de esgoto na conta da água) e a Lei de Orçamento Anual, aquela que autoriza o gasto de mais de 4 bilhões da receita municipal prevista para 2022.
Votamos o prêmio saúde sob a pressão dos agentes de saúde que estavam presentes na galeria. Trabalhadores fundamentais da saúde, a base da pirâmide salarial e que serão beneficiados com o valor de R$ 400,00 de prêmio saúde.
Mas a pegadinha foi que, enquanto garante R$ 400,00 para os menores salários, o prêmio saúde dobra o salário de quem ganha mais e trabalha na gestão, na área meio. Por exemplo, no gabinete do secretário de saúde o assessor técnico pode ganhar até R$ 4.800,00 de prêmio saúde, mas, se for do secretário adjunto, tem mais vantagem, podendo chegar a R$ 5.800,00!! O que explica isso?
Alguém que tenha apenas o nível médio e trabalhe nos gabinetes poderá receber até R$ 1.000,00 de prêmio saúde. Mas para quem estiver nas unidades básicas de saúde, o prêmio varia de R$ 1.200,00 a R$ 400,00. Os valorosos agentes de saúde estão aí contemplados com o menor valor.
Eu realmente fiquei em dúvida sobre a finalidade do prêmio. A mim pareceu um arranjo para legalizar práticas condenadas pela justiça e que levaram ao afastamento do prefeito. Não havia critérios objetivos, cada grupo de servidores com valores diferentes sem que houvesse justificativa, critérios objetivos e, pior: a lei do prêmio saúde contraria a LOA, que destina R$ 45 milhões para pagamento do prêmio saúde, enquanto o projeto de regulamentação previa 80 milhões/ano. Tudo isso para ser movimentado por portaria do Secretário de Saúde. Não pude votar sim.
A pressa que nos impedia de elaborar juízo naquela urgência de aprovação sem ressalvas, sem emendas e, sem sequer ter acesso antecipado às matérias, me impediu de votar a favor de outro projeto do executivo: o que cria Verbas Indenizatórias na ordem de 75% sobre os salários dos cargos em comissão do Poder Executivo.
Por que criar Verba Indenizatória para cargos administrativos? Por que insistir num expediente que já havia sido reprovado pelo Tribunal de Justiça em ano anterior? O mesmo judiciário que obrigou a Câmara de Cuiabá a pagar V.I. para os(as) vereadores(as) na ordem de 60% do salário e, com lei discriminando o que parlamentares podem e não podem gastar. Agora, a Câmara aprova e atesta legalidade de um projeto flagrantemente ilegal?
Em meio a tanta coisa, que me tirou o sossego, vieram os projetos do Legislativo sobre a verba indenizatória e auxílios criados para os(as) vereadores(as). O projeto (que não foi disponibilizado para leitura) é uma adequação à decisão judicial. Nele, a V.I. é reduzida para R$ 14 mil e cria-se os auxílios: saúde, alimentação e transporte (no modelo utilizado e autorizado pelo Poder Judiciário). Desse modo, entre a V.I. e auxílios pessoais aos vereadores(as) somam R$ 22.000,00.
Apesar de não ser contra a verba indenizatória para agentes políticos e de ter participado de uma reunião na qual a proposta foi apresentada, não achei ético aumentar nossos próprios proventos enquanto a população passa fome. A Câmara foi, ao longo do ano, um Poder inerte frente ao sofrimento do povo. Não foi capaz de dar um passo para pressionar o Poder Executivo a cumprir sua obrigação, afinal, se tem gente passando fome, o que tem mais prioridade do que combater a fome? É uma questão ética que me espanta que nenhum poder instituído seja capaz de resolver, ao mesmo tempo em que aumentam seus próprios rendimentos.
De outro lado, de novo, todas as nossas emendas modificativas apresentadas ao PPA, à LOA/2022 foram reprovadas pelas comissões, entre elas a que destinava R$ 5 milhões para a política de transferência de renda no município.
Tenho a impressão de que o orçamento de Cuiabá é um grande rateio de recursos entre quem tem o controle da máquina pública. Enquanto isso, como disse Machado de Assis em sua célebre frase diante da Proclamação da República: “o povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava...”
No meio desse rio caudaloso, há muitas mãos que seguram a canoa da terceira margem e é no movimento do rio que a canoa se equilibra, na solidão da única mulher negra, feminista e de esquerda na Câmara que abraça e é abraçada pela a coletividade que constitui nosso mandato!
EDNA SAMPAIO - Vereadora pelo PT em Cuiabá.